NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica.
o dia começa não querendo ser apenas um e nós sequer levantamos da cama. o sol nasce especialmente para despertar os nossos corpos e eu, muito sonolenta, estico o meu braço esquerdo em direção a janela e deixo um feixe de luz entrar. o olho como uma mãe olha o seu filho dormir. é assim que gosto de tê-lo: desprotegido e encolhido em meu ventre. ele acorda e se desfaz de sua pose fetal, me diz bom dia e beija a ternura dos meus dedos. eu só sei pensar em amor. sorrio suavemente pensando na acentuação da minha felicidade e o agarro com as duas pernas. o contorno do meu corpo sobre ele. o meu corpo ainda para ele. todos os meus dias poderiam ser assim - se eu realmente quisesse, seriam... eu só sei falar de amor e está tudo ainda tão preso dentro de mim.
a
verdade é que eu já sabia de tudo. o tapa na cara, eu já sentia minha
pele arder alguns dias antes. mas como de costume, tapei os olhos e
joguei o corpo. esperei pelas palavras tão confusas que vezenquando
saltam das bocas, mas o que veio foi o inaudível. não pude captar de
primeira. então comecei a roer as unhas, a balançar as pernas, a torcer
guardanapos. that's me, babe. e mesmo assim nenhuma mensagem. tudo isso
já era bem óbvio, quer dizer, o suficiente. mas eu, com a minha mania de
significados e prolongações, queria espremer tudo, chupar o bagaço, ver
o oco. pisciana confusa, me disseram em voz alta. pisciana
neurótica, eu disse em voz baixa a mim mesma. apaguei um por um, como o
de costume, aí corri sem deixar nenhum sinal. tive uma emoção como
todas as outras e só.
encaramos diretamente a pupila do outro
e nem demos conta do resto.
depois não foi muito,
talvez o bastante
(e não é isso que o fará mais bonito)
a verdade é que eu poderia ter caído nessa contigo, boy
fato incontestável.
mas eu não sei bem ao certo
em qual momento me veio a ideia de tirar o corpo fora.
como um estalo
deixei passar
longe de mim.
as coisas que se perdem
(aqui de dentro)
são cada vez mais minúsculas
que eu nem sei se convém correr atrás.
o valor era baixo,
ele me falou.
eu não sei lidar com a falta. sorte sua que existe sozinho e independe do calor do outro. tenho contado as vantagens e até agora não há um sopro ao meu favor. digo que acho isso um tanto incrível e vou arrancando sutilmente com os dentes o esmalte que me resta nas pontas dos dedos, enquanto lá de cima você me encara com tamanha maestria. gosto de pensar que eu era suave assim , que aqui existia algo de bom, que esses dias de cão só fazem parte de uma fase e que no fim das contas tudo tende voltar ao normal mesmo. novos dias virão, eles me dizem, mas é como se o tempo tivesse passado rápido demais sobre mim e sem dó. hoje recuso-me a acreditar. coloco a água no bule e remeto-me a consolos de mamãe, às vezes uma gota se divide em duas, e essas deslizam todo um caminho diferente para se reencontrar somente no final. meio cabisbaixa começo a rir sozinha. entendo que por medida de proteção ela não terminou o óbvio, e por tantas vezes essas mesmas gotas simplesmente vão para o ralo. simples assim, ela diria, e sem delongas.
há de se conformar,
meu amor
uma obra do destino
e o reflexo no espelho
para que não me deixe nunca mais.
para que não me deixe nunca mais.
à vezes penso o que teria acontecido comigo se aquilo que chamo de "minha vida" tivesse tomado um outro rumo, talvez eu nem estaria aqui, talvez eu não me resumiria a isso, talvez a gente nunca teria se encontrado. eu nunca tocarei a outra margem, mas carregarei o peso dos seus olhos sobre mim quando as coisas complicarem, e isso, talvez, é o que me dói mais. por essa razão, eu estou aqui em teste.
pouco me importa os cães lá fora.
o que me faz correr é sempre o mesmo,
e independente do que for acontecer, eu cuido do meu.
cuidado.
o que me faz correr é sempre o mesmo,
e independente do que for acontecer, eu cuido do meu.
cuidado.
não espero nada de ser tudo isso aqui a cada dia e sempre.
(e já não me resta muita coisa a fazer)
Desde que nos separamos, acrescentou de repente, forçando ou buscando um tom natural — desde que nos separamos fui para a cama com dois homens. Eu não estive com nenhum, respondi, fazendo graça. Então você não mudou muito, disse ela, rindo. Mas estive com duas mulheres, disse eu. A verdade é que foi só uma. Menti, talvez para empatar. E no entanto não pude levar o jogo adiante. Só a ideia de te imaginar com alguém é insuportável, disse eu, e foi complicado, depois, preencher aquele silêncio.
Eu me lembro de quando ela se foi. Supõe-se que seja o homem a deixar a casa. Enquanto ela chorava e empacotava suas coisas, a única coisa que me ocorreu dizer foi esta frase absurda: Supõe-se que seja o homem a deixar a casa. De alguma maneira sinto, ainda, que este espaço é dela. Por isso para mim é tão difícil viver aqui.
Voltar a falar com ela foi bom e talvez necessário. Contei sobre o novo romance. Disse que no começo avançava a passo firme, mas que aos poucos tinha perdido o ritmo ou a precisão. Por que não o escreve de uma vez?, me aconselhou, como se não me conhecesse, como se não tivesse estado comigo ao longo de tantas noite de escrita. Não sei, respondi. E na verdade não sei mesmo.
O que acontece, Eme, penso agora, um pouquinho bêbado, é que espero uma voz. Uma voz que não é a minha. Uma voz antiga, romanesca, firme. Ou então é que eu gosto de estar no livro. É que eu prefiro escrever a já ter escrito. Prefiro permanecer, habitar esse tempo, conviver com esses anos, perseguir longamente imagens esquivas e examiná-las com cuidado. Vê-las mal, mas vê-las. Ficar aqui, olhando.
Alejandro Zambra.
libertar
é uma palavra imensa cheia de questionamentos e dores. encarar o
significado semântico na prática é uma lição de amadurecimento
espiritual que poucos conseguem entender. quando eu olhei para a minha relação com J., percebi o quanto que a tradição
e bons costumes haviam nos ensinado que o amor bom não é livre, mas carregado de dependência. amar J. foi, sob o disfarce do
romantismo, não conseguir viver sem ele e sofrer um processo
de despersonalização gradual até me transformar lentamente no espelho daquela pessoa
amada. lógico que essas reflexões vieram somente depois de algumas sessões de terapia e noites regadas a álcool e sofrimento. foi difícil assimilar a mutilação que a minha identidade sofria, porque para enxergar isso eu precisava aceitar que eu consentia. e entender a aceitação implicava em mudanças. eu simplesmente não podia chegar ao desamor tão fácil, isso só chegaria depois.
preciso deixar claro que nem sempre as coisas foram assim. J. era extremamente bom comigo, até que um dia não conseguiu mais ser. eu nunca consegui ser completamente boa com J., porque sempre pesei as entregas que a nossa relação exigia. com o passar dos anos, tudo foi ficando denso e o riso fácil virou coisa rara. tudo em J. me irritava, o seu esforço em alcançar a perfeição e a sua inabilidade com o inesperado o transformou em uma pessoa totalmente insuportável aos meus olhos. as minhas manias tortas certamente irritavam J., pois eu percebia o seu esforço em tentar corrigir as minhas falhas. a partir daí, brigas desnecessárias começaram a fazer parte dos nossos diálogos e o desrespeito mútuo instalou-se em nós.
depois veio a culpa cristã de não poder renunciar a quantia de amor ofertada. eu me sentia totalmente desajustada por não conseguir conversar com pessoas comuns sobre as insatisfações que aquele relacionamento me causava, e J. não mediu esforços ao jogar a responsabilidade do fracasso em meu colo. a verdade é que J. também não conseguia ser feliz e presenciar a minha decadência enaltecia, de alguma forma, a sua vaidade. existia entre nós um desejo frequente de deixar o outro, mas todas as tentativas mostraram-se infrutíferas e pouco contundentes. acho que nos enganamos demais nos significados das coisas. é lamentável, eu sei, mas a nossa incompetência de lidar com o abandono nos fez reféns de nós mesmos.
não consigo imaginar nada mais triste do que os meus últimos dias ao
lado de J. restava pouca lucidez para que eu conseguisse ser uma mulher
inteira. hoje, por mais que eu tente encarar o sofrimento pessoal como um
caminho necessário, prefiro viver como se não houvesse a mínima possibilidade de nos
encontrarmos novamente. não consigo desejar rever aquele homem com quem vivi por tanto tempo, mas não carrego raiva. não é isso. essa só foi a maneira que consegui prezar pela minha saúde mental.
"eu te quero por inteira, mulher". acho que foi essa a última frase que escutei antes de desabar.
depois de um porre fenomenal, eu já não conseguia distinguir o que era real
ou fantasia. quando J. me deixou, parei pra pensar naquilo que eu
chamava de nossa vida - o que certamente só existia na minha mente tão
congestionada. vezenquando eu conseguia concretizar aquele sofrimento moralista em uma única
lágrima e assumir em meio a um soluço e outro que eu não sabia o que fazer com aquele pedaço de amor que me restara. eu não sabia o que fazer para esquecer J., então tive que aprender a viver me esfolando. depois de tanta coisa machucada e desgastada, eu desenvolvi uma maneira de congregar toda a minha insatisfação em um único ato. veio-me a ideia: primeiro sofre-se, depois escreve-se por
vingança.
escolhi crisântemo para o mês. queimei
incenso pela casa, improvisei rezas, lavei o corpo pensando na alma e
sei lá se fez alguma diferença. desde que J. passou para o lado de
fora daquela porta, fiquei a pensar nos meus atos desesperados e nessa
preguiça toda que toma conta dos cômodos. ainda havia muito de J. por aqui. seus LP's estavam espalhados por debaixo da cama, no canto do
sofá, sob a poltrona e até no banheiro. era um esforço terrível encarar a mudança. e por mais que eu tentasse arrumar as coisas de J. e deixar um novo feixe de luz entrar, essa cobrança interna não me parecia nada natural.
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contra aquela manhã de fevereiro, coloquei a música da chuva
que ele cantava tão mal, mas que meus ouvidos já estavam tão habituados. o movimento das coisas. quando dei por mim, estava a dançar em círculos como se o ritmo normal da vida estivesse naquele batuque e nada fosse capaz de tirar a poesia dali. meus pés
simplesmente não paravam e o meu peito crescia a cada respiração
acelerada. por algum absurdo, não me lembro de cambalear sequer uma vez.
a felicidade gritava no estômago. foi quando decidi abrir os
olhos e fitar com muita lucidez a casa ao meu redor. ela agora era
minha, no entanto parecia um erro acreditar nisso. a casa era minha, mas por motivos tão óbvios eu não sentia como se aquele espaço fosse meu. ao processar dos meus pensamentos, eu sentia cada sentimento murchar. subi lentamente as escadas, percorri os cômodos com minhas inseguranças e retornei exausta ao centro da sala. J. ainda estava dentro do meu mundo e tudo o que meu olhar conseguia penetrar me dizia que ele ainda estava presente.
quando o
conheci pensei que a nossa história poderia acabar em um roteiro da
Julie Delpy. o fato de ter nos conhecido em um festival musical de verão
me deu o direito de passar longas noites fantasiando sobre isso. nos
conhecemos em movimento, fizemos típicos roteiros românticos de casais
recém-casados e
por isso gostávamos de dizer que o nosso romance não seguia a lógica
habitual dos acontecimentos. estávamos tão felizes que não pensávamos se
as coisas faziam muito sentido ou se aquela direção era a correta.
simplesmente havíamos decidido enfrentar os próximos dias com a
naturalidade e coragem de quem quer viver.
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o sol saía lá fora e nós não tínhamos nenhuma preocupação em levantar da cama. lembro de como eu o olhava como uma mãe olha o seu filho dormir. eu gostava de tê-lo assim, desprotegido e encolhido em meu ventre. ele acordava e se desfazia de sua pose fetal, me dizia "bom dia" e beijava a ternura dos meus dedos. eu o admirava e só pensava em amor. "todos os meus dias poderiam ser assim". e se eu, realmente, quisesse, seriam. eu só falava em amor, mas ainda tudo estava tão contido dentro de mim.
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no primeiro momento que aterrisei os meus pés no chão, tentei me certificar de que aquele terreno era seguro. alimentei uma dúvida profunda sobre a verdadeira identidade daquele homem e estava irredutível a acreditar em sua existência. confesso que eu esperava secretamente que ele fosse se encaixar em algum esteriótipo. a cada encontro eu me preparava para isso, mas quanto mais fomos nos aproximando e eu fui aceitando baixar a guarda, ele foi demonstrando ser uma pessoa totalmente distinta de qualquer outra que eu já conhecera. e aqui não faço diferenciação de sexo não, pois durante a nossa aproximação e as minhas quebras de paradigmas, jurei a mim mesma nunca mais repetir comentários e comparações sexistas. ninguém imagina quão difícil foi deixar qualquer tipo de pré-conceito para trás. sem eles eu estava desmunida e a única alternativa que me sobrava era compreender e confiar.
no primeiro momento que aterrisei os meus pés no chão, tentei me certificar de que aquele terreno era seguro. alimentei uma dúvida profunda sobre a verdadeira identidade daquele homem e estava irredutível a acreditar em sua existência. confesso que eu esperava secretamente que ele fosse se encaixar em algum esteriótipo. a cada encontro eu me preparava para isso, mas quanto mais fomos nos aproximando e eu fui aceitando baixar a guarda, ele foi demonstrando ser uma pessoa totalmente distinta de qualquer outra que eu já conhecera. e aqui não faço diferenciação de sexo não, pois durante a nossa aproximação e as minhas quebras de paradigmas, jurei a mim mesma nunca mais repetir comentários e comparações sexistas. ninguém imagina quão difícil foi deixar qualquer tipo de pré-conceito para trás. sem eles eu estava desmunida e a única alternativa que me sobrava era compreender e confiar.
em
uma relação em que o medo do desconhecido e da total-entrega persiste, é
muito comum nos defendermos antes de qualquer entendimento, porque
qualquer emoção que faça nosso sangue pulsar de forma diferente também
já faz tremer as pernas. às vezes eu tinha recaídas e tentava esconder o
erros pessoais com frases prontas que qualquer pessoa comum usaria como
conforto. talvez isso tenha me impedido de olhar para dentro e entender
o que estava me machucando de fato. o que faltava que me impedia de
conduzir as coisas de forma saudável? o que faltava que me fazia
conduzir a minha vida de forma tão autodestrutiva? eu precisei de alguns
anos para ganhar a disposição de entender as minhas armadilhas
internas, o que me deu certo senso de responsabilidade sobre as minhas
próprias emoções e atitudes. o mesmo não sei se aconteceu com J. a
intensidade da nossa aproximação desgastou o que um dia foi um roteiro
bonito de filme e acusações injustas sobre a falta de racionalidade e o
excesso de emoção do outro passou a fazer parte do nosso cotidiano.
# # #
todo
final me emociona. choro sem parar por doze horas, durmo por três dias e
bebo por tempo indeterminado. cada um desce do jeito que acha melhor,
babe. era o que o amigo me dizia em tom de humor - e por mais que a gente fizesse piada e eu conseguisse abafar o grito com a gargalhada, a queda nunca foi uma experiência confortável. doía cada parte. cada pensamento sobre ele doía e a a verdade era
tão simples: J. não me pertencia, e digerir essa fala me parecia
absurdamente errado e profundamente doloroso. eu o amava nos mínimos
detalhes, mas não sei se o amava sempre. eu o amava somente em momentos
como esse, quando já não
fazia mais sentido algum e era tarde demais para tentar sofisticadas
harmonias.
solicito diariamente
por uma intervenção divina. um raio de luz, uma janela batendo, qualquer
sinal que me faça acreditar que, por mais que eu sinta o contrário, eu
não estou sozinha. acontece que a vida tem pesado para o meu lado, boy.
eu realmente sinto a falta de alguma coisa. ando muito completa de
vazios e imensamente sem tempo para preenchê-los. sem eternidades, bem
assim eu conceituaria. estou corroída por uma suspeita de que estou
condenada a viver eternamente com este desconforto. e o que me assusta
é saber que 'foi conscientemente que escolhi o exílio'. fiz o que
tive que fazer e, de repente, pensando nisso, descobri que é tão duro
constatar que sou muito comum com sucessivas perdas.
itálico de Raduan Nassar.
everything had shattered. everything had been gone away for good this time. and the feeling that was left couldn't give to my heart a normal beat. I was empty, as if my whole existence could be dissolved at a touch. and I had no longer control over my thoughts and emotions, they had all vanished before I could even save them. so I was standing there in my empty room, sitting on my unmade bed and staring at my own devastated face in the mirror when I started whispering a desperate pray to any major force: please, lord, bring me back some emotion. make this life livable. make anything happen again.
o amor calmo, tranquilo, que chega de manhã trazendo os cheiros de café e pão quente e que em um natural impulso te faz correr para a cozinha e sentar à mesa para mais um petit-déjeuner. o amor suave com cheiro de chuva e alma de domingo preguiçoso, insosso, sofá quente e televisão ligada. o amor passivo e banal que te deixa todas as noites deitar a cabeça no travesseiro sem preocupações e medos. o amor que não assusta, não sufoca e não faz tremer as pernas. o amor que já não dói mais, pois chega quando todas as energias já foram esgotadas e a batalha interior habitual é tentar aprender a viver. o amor comunal, feito e refeito no cotidiano lado a lado de quem se ama.
acho que foi o ato de ter que constantemente partir que me
fez descobrir tantas outras coisas novas, ou talvez simplesmente
esquecidas, aqui dentro de mim. a cada partida eu me voltava para
dentro na tentiva de encontrar alguma explicação para os nossos
prolongamentos - ou alguma memória que me convencesse de que era
necessário persistir. ao revirar as memórias já tão bagunçadas eu
revivia ideias solitárias, mas que eram minhas, somente minhas, e talvez
por isso carregavam um sabor único de mistério e também independência.
nas minhas memórias sofridas eu era capaz de lembrar de mim e das
poucas coisas que faziam parte do meu íntimo. e quando o fazia, meu
peito estufava de alívio por um dia ter tido a coragem de encarar a
profundeza do exílio e manifestar a explícita capacidade de lidar com as
incompletudes sem medo.
por nada nesse mundo eu confessaria
ser também mais uma dessas mulheres desesperadas. antes disso eu sumo.
me deixa quieta, vai. estou cansada e sem fé para os próximos dias. não
adianta me procurar, deixar mensagem na caixa eletrônica ou pedir para o
tiozinho da portaria avisar que você passou por aqui. para entender o
abismo é preciso virar pelo avesso, então me dê espaço. o caminho nunca
pareceu tão longo e a verdade é que ninguém te acompanha até o final. a
gente tem que abraçar a solidão, entende? familiarizar-se com as
incompletudes, as falhas e os domingos a base de comida congelada.
porque tudo isso se repete. é ciclo e é vida.
An
honorable human relationship — that is, one in which two people have the
right to use the word “love” — is a process, delicate, violent, often
terrifying to both persons involved, a process of refining the truths
they can tell each other. It is important to do this because it breaks
down human self-delusion and isolation. It is important to do this
because in doing so we do justice to our own complexity. It is important
to do this because we can count on so few people to go that hard way
with us.
Adrienne Rich.
já
havia decido não criar mais expectativas sobre as relações humanas, pois
as experiências me ensinaram que você pode até estar ali, ouvir, dar
suporte, se fazer presente e útil, mas nada disso garante que receberá o
mesmo quando precisar. a reciprocidade dificilmente será uma lei, e
alguns até diriam que esse é o risco e a delícia de se envolver. mas
hoje, em um dia normal como qualquer outro - talvez
com a pequena diferença de que não acordei tão disposta e vibrante
assim - eu me surpreendi com a graça das pequenas coisas. entrei em sala
preparada para mais uma aula. deixei os problemas para fora da escola e
tentei mostrar ali o melhor de mim. depois de alguns segundos de aula
fui interrompida: "Professora, alguma coisa aconteceu com a Sra., o que
fizeram com o seu sorriso de sol?". respirei fundo, fingi um sorriso e
tentei desconversar retomando o plano de aula com naturalidade. a aula
terminou e achei que tinha me livrado dessa, cheguei a pensar "segura o
choro e o coração, Sara". segunda turma. mais uma vez tentei agir com
naturalidade, mas fui interrompida novamente. droga. "tia, posso chegar
perto de você?", "claro, chega mais perto", falei meio pressentindo o
que viria. "eu vou te dar um abraço, tia, porque é isso que eu faço com a
minha mãe quando percebo que ela está triste". depois dessa foi quase
impossível conter o sentimento.
“all photographs are memento mori. to take a photograph is to participate in another person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability. precisely by slicing out this moment and freezing it, all photographs testify to time’s relentless melt.” - Sontag, Susan.
reinaugurando velhas paixões.
fotos: Sara Castillo
estou tão sozinha que faço carinho em minha sombra e ensaio conversas que nunca serão pronunciadas. não sei quando as coisas começaram a ser assim. talvez por descuido ou conveniência deixei de enumerar os fatos, gravar os rostos, soletrar os nomes. a minha inquietação foi responsável pelo extermínio. me foge a razão dos dias e ainda assim a sensação do tato só pode ser uma só. esse frio não me intimida, penso alto. é preciso insistir no contraponto, meu deus. dobro os joelhos, acho que estou imensamente cansada, rezo, mas por algum motivo não sou atendida.
Custa tanto ser uma pessoa plena, que muito poucos são aqueles que têm a luz ou a coragem de pagar o preço. É preciso abandonar por completo a busca da segurança e correr o risco de viver com os dois braços. É preciso abraçar o mundo como um amante. É preciso aceitar a dor como condição de existência. É preciso cortejar a dúvida e a escuridão como preço do conhecimento. É preciso ter uma vontade obstinada no conflito, mas também uma capacidade de aceitação total de cada conseqüência do viver e do morrer.
Morris West.
o amor, o amor de verdade, chega no fim. quando a mágoa incrustou na
pele e virou proteção. quando o canal lacrimal já secou. quando a
olheira não some. o amor, o amor tranquilo e forte chega quando acaba a
esperança, chega na completa falta de possibilidade. no meio da memória
falhada, da crise existencial. o amor, aquele que é para durar e
carregar um para sempre só se apresenta quando, sem chances de
surpresa, você não acredita que vá existir qualquer tipo de sentimento
para te arrebatar. o amor, o amor que fica, chega na hora precisa, na
hora que você, sem saber, ama para entender o que é a vida.
por Camila Pereira M.
hoje
acordei e meus olhos se abriram para o teto. fiquei um bom tempo ali
encarando o profundo branco sem pensar em absolutamente nada - porque
nada absolutamente pensado eu seria capaz de suportar naquele momento.
então quando menos percebi, eu tinha lágrimas caindo
.
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vezenquando sou surpeendida por um mezzo-sentimento de inquietação que não consigo entender. é como se as coisas não estivessem mais no lugar e, involuntariamente, eu soubesse que a verdade, querida, é que nunca estarão. de repente, tudo fica mais pesado e eu vou perdendo, aos poucos, o controle sobre a minha vida. então percebo que já deu.
tudo tem o seu prazo mesmo e a transitoriedade das coisas sempre foi algo inerente à minha
condição cigana. é preciso deixar tudo isso para trás, babe, antes que seja
tarde demais. é preciso recomeçar. de qualquer forma, de qualquer lugar. porque, inevitavelmente, a gente segue.
se for para falar a verdae, ser honesta comigo mesma, assumir diante do espelho, hoje eu entendo que, nesse intervalo de 6 anos, não deixei os lugares que vivi por puro capricho. fui deixando para trás um a um por tristeza, desconforto, desajuste. e eu não sei se um dia esse combo de sentimentos vai passar.
adeus, brasília. conviver com você durante esses "quase-dois-anos" foi uma experiência desgostosa, mas necessária. doeu, decepcionou e entristeceu bastante descobrir a sua lógica de sobrevivência, mas também enriqueceu e me fez uma mulher mais decidida e forte. durante esses dois anos, você me fez repensar um montão de coisa que acontece nesse mundo que influencia muito o que eu sinto aqui por dentro. a verdade é que você me deu a coragem que eu precisava para assumir a responsabilidade sobre a minha vida e fazer qualquer coisa incrivelmente inspiradora com ela. viver exige sempre mais.