libertar é uma palavra imensa cheia de questionamentos e dores. encarar o significado semântico na prática é uma lição de amadurecimento espiritual que poucos conseguem entender. quando eu olhei para a minha relação com J., percebi o quanto que a tradição e bons costumes haviam nos ensinado que o amor bom não é livre, mas carregado  de dependência. amar J. foi, sob o disfarce do romantismo, não conseguir viver sem ele e sofrer um processo de despersonalização gradual até  me transformar lentamente no espelho daquela pessoa amada. lógico que essas reflexões vieram somente depois de algumas sessões de terapia e  noites regadas a álcool e sofrimento. foi difícil assimilar a mutilação que a minha identidade sofria, porque para enxergar isso eu precisava aceitar que eu consentia. e entender a aceitação implicava em mudanças. eu simplesmente não podia chegar ao desamor tão fácil, isso só chegaria depois. 

preciso deixar claro que nem sempre as coisas foram assim. J. era extremamente bom comigo, até que um dia não conseguiu mais ser. eu nunca consegui ser completamente boa com J., porque sempre pesei as entregas que a nossa relação exigia. com o passar dos anos, tudo foi ficando denso e o riso fácil virou coisa rara. tudo em J. me irritava, o seu esforço em alcançar a perfeição e a sua inabilidade com o inesperado o transformou em uma pessoa totalmente insuportável aos meus olhos. as minhas manias tortas certamente irritavam J., pois eu percebia o seu esforço em tentar corrigir as minhas falhas. a partir daí, brigas desnecessárias começaram a fazer parte dos nossos diálogos e o desrespeito mútuo instalou-se em nós. 

depois veio a culpa cristã de não poder renunciar a quantia de amor ofertada. eu me sentia totalmente desajustada por não conseguir conversar com pessoas comuns sobre as insatisfações que aquele relacionamento me causava, e  J. não mediu esforços ao jogar a responsabilidade do fracasso em meu colo. a verdade é que J. também não conseguia ser feliz e presenciar a minha decadência enaltecia, de alguma forma, a sua vaidade. existia entre nós um desejo frequente de deixar o outro, mas todas as tentativas mostraram-se infrutíferas e pouco contundentes. acho que nos enganamos demais nos significados das coisas. é lamentável, eu sei, mas a nossa incompetência de lidar com o abandono nos fez reféns de nós mesmos.

não consigo imaginar nada mais triste do que os meus últimos dias ao lado de J. restava pouca lucidez para que eu conseguisse ser uma mulher inteira. hoje, por mais que eu tente encarar o sofrimento pessoal como um caminho necessário, prefiro viver como se não houvesse a mínima possibilidade de nos encontrarmos novamente. não consigo desejar rever aquele homem com quem vivi por tanto tempo, mas não carrego raiva. não é isso. essa só foi a maneira que consegui prezar pela minha saúde mental.

2 comentários:

alline morbeck disse...

me vejo na tua escrita e nas tuas dores, sara. já li e reli uma centena de vezes.

obrigada (:

Anônimo disse...

Relato ao mesmo tempo singular e universal, no mundo dos relacionamentos abusivos que tantas de nós passamos... Sensibilidade única. Parabéns moça.

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